Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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20 de maio de 2024

Jogando: Shadow Warrior 2

shadow-warrior-2-teamO número de opções de jogos de tiro ou sobrevivência em primeira pessoa que podem ser jogados cooperativamente no modo campanha está diminuindo rapidamente. Meu filho e eu estamos ficando sem alternativas que sejam baratas (lembrando que é necessária a aquisição de duas licenças). Eu não me importaria de jogar títulos isométricos, títulos em terceira pessoa, RPGs, jogos de estratégia e uma miríade de outras opções, porém o guri tem um horizonte de gostos mais estreito que o meu e não foi por falta de tentativas de ampliar sua mente.

É um longo preâmbulo para justificar a escolha de Shadow Warrior 2, um título que já estava no meu acervo por anos, embora não tenha encostado na franquia desde os anos 90 e o Shadow Warrior original. É um longo preâmbulo, mas que já orienta a direção dessa análise: Shadow Warrior 2 é um jogo mediano em todos os seus aspectos. Na definição de meu filho, é "arroz com feijão", depois que você já comeu a carne (no caso dele, frango). Se você é daqueles que não curte textos mais longos, podemos encerrar por aqui deixando claro que meu filho respondeu "não" a minha pergunta se ele toparia jogar Shadow Warrior 3, na eventualidade de comprar o jogo.

A ausência de capturas de telas em 15 horas de jogatina é outro forte indicativo de que o título passou por aqui sem grandes momentos ou sem muito impacto. Se serve de consolo, há uma sessão de Shadow Warrior 2 gravada no canal.

Who Want Some Wang?

Pulamos o primeiro jogo pelo simples motivo de ele ser single-player e acreditando que isso não teria impacto algum na experiência da história. E não há mesmo. Enredo é a questão menos importante dentro da franquia, aparentemente, uma frágil espinha dorsal para destilar uma sequência quase infinita de piadas de quinta série entre uma sequência de carnificina e outra. Nesse sentido, o título da Wild Hog se aproxima bastante de Borderlands. Em minhas análises de Borderlands sempre critiquei a ausência de legendas em Português para acompanhar a avalanche de gracejos e passei a ignorar os aspectos mais cômicos daquela franquia. Em Shadow Warrior 2, há legendas em nosso idioma e percebi que não há diferença: a metralhadora não apenas não é exatamente engraçada, como também distrai durante tiroteios frenéticos. Cheguei a um ponto de optar por desabilitar as conversações com determinado personagem.

Tivemos então uma noção superficial da trama, dada sua irrelevância. John Carmack sempre dizia que história é tão importante para um FPS quanto para um filme pornô, afirmação que sempre me incomodou, já foi refutada até mesmo por seus colegas de id Software e não faz mais sentido algum desde Gordon Freeman. Entretanto, uma história ruim e protagonistas caricatos podem acabar prejudicando a experiência, em vez de ajudar. Lo Wang nunca foi um exemplo de genialidade, porém, nos jogos antigos, ele era menos intrusivo.

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Se a história e suas interações irritam, nos resta então a jogabilidade. Descontando os bugs de conexão que sempre faziam nossa hora de jogo ser uma incerteza, Shadow Warrior 2 entrega um ritmo irregular. De um lado, temos hordas nervosas atacando em pontos chave dos mapas, gerando um festival de brutalidade que, admito, me agradou bastante. Sentirei falta de uma boa motosserra em todos os jogos de tiro daqui pra frente. Do outro lado, temos uma oferta excessiva de modificadores de armas, de novas armas e habilidades, que quebram o andamento, obrigando o jogador a pausar e microgerenciar equipamento o tempo todo (um prazer inenarrável para meu filho, a nível quase obsessivo, porém um trabalho enfadonho para mim). É uma repetição da fórmula de Borderlands outra vez, ligeiramente melhor executada aqui.

Na confusão das hordas, determinados inimigos tem vulnerabilidades e resistências elementais, o que incentiva a troca de armas para melhor efetividade. Entretanto, não há tanta diferença assim, principalmente quando o ganho é pequeno: cada inimigo é uma esponja de dano, mesmo aqueles que são humanos. Além disso, os próprios inimigos se movem constantemente e é complicado acompanhar qual é a melhor arma para matar qual. Na dúvida, metia minha motosserra neles ou a arma que achava mais gostosa de usar (com munição disponível). Há um fluxo quase sufocante de novas armas sendo desbloqueadas, com muitas variáveis de dano para avaliar. O sistema aleatório das lojas incomodou meu filho: ele desejava usar um arco composto (outra de suas obsessões), mas não conseguiu nenhum, enquanto o lojista oferecia para mim essa opção (e não comprei, pois não curto).

Graficamente, o jogo brilha. Há muitos efeitos visuais e detalhes nas texturas, em quantidade suficiente para minha RTX 2060 não conseguir atingir níveis Épicos, mas ainda assim ser um título bonito. E, felizmente, o jogo foi otimizado no nível certo para que meu filho, com uma configuração mais modesta, também pudesse ter uma experiência visualmente agradável. O design das fases com múltiplos caminhos permite sua reutilização frequente sem ser cansativo, introduzindo aqui e ali fases exclusivas. O design dos inimigos também é bastante criativo, ao ponto de eu lamentar que as lutas sejam tão velozes e todos os oponentes acabem se tornando um grande borrão na minha frente que precisa ser aniquilado.

Sem muita empolgação, mas também sem rejeição, fomos avançando, nos concentrando na campanha principal e realizando poucas missões secundárias (os contratos de recompensa foram praticamente ignorados). Havia uma certa pressa para completar o jogo e trocar para outro título, mas não tão forte que nos fizesse desistir. Shadow Warrior 2 simplesmente existia em nosso caminho.

O penúltimo chefe foi divertido de enfrentar, com várias etapas, mas foi uma batalha fácil, resolvida em uma tentativa, sem ninguém morrendo. Mesmo com a dificuldade ajustada para dois jogadores, mesmo acumulando poucos pontos de habilidades (por não fazer tantas missões secundárias), Shadow Warrior 2 pode ser definido como um jogo fácil. Lamentavelmente, o confronto final não é nem de longe tão interessante quanto o anterior que havíamos acabado de vencer. Como se importasse, o enredo não fecha: há um gancho no final, que é o ponto de início do terceiro jogo. Se houvesse algum de nós desejando um fechamento, certamente teria se decepcionado.

Ouvindo: The Dollyrots - Feed Me, Pet Me

7 de maio de 2024

Jogando: POOLS

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(publicado originalmente no Gamerview)

Existe o nicho. E existe o nicho dentro do nicho. E existe POOLS. Dentro do gênero terror, nós temos o survival horror, em que jogador está indefeso diante de circunstâncias que ele não controla. Dentro disso, nós temos o recente fenômeno das Backrooms, em que o jogador vaga por espaços liminares incompreensíveis, geralmente sendo perseguido por uma ameaça existencial. Dentro das Backrooms, nós temos um tipo específico de dimensão em que tudo remete a ambientes de piscinas e clubes aquáticos. É aqui, nesse cantinho minúsculo da indústria dos jogos, que a desenvolvedora Tensori criou sua obra.

O resultado final é uma experiência com horizonte bastante limitado, que explora ao máximo todas as suas possibilidades e cumpre exatamente o que se espera de um fetiche tão raro. É um fenômeno em si que esse jogo exista, que a segmentação dos jogos eletrônicos tenha atingido um nível tão elevado que nós tenhamos um título em estado da arte sobre esse tema e tão somente esse tema.

Perdido dos Pais

Quem nunca se perdeu dos pais em um shopping ou supermercado? Talvez em um museu. Talvez… no clube? Esses espaços sociais supostamente foram projetados para passar uma sensação de segurança e assepsia, com luzes fortes, piso imaculadamente limpo, objetos e sinalizações calculadamente organizados. Nesses lugares, a entropia é anulada, o caos não penetra e a ordem prevalece. Até o momento em que nos encontramos perdidos dentro de tais espaços, sem conseguir nos comunicar, sem conseguir encontrar o caminho de volta para nossa casa ou simplesmente uma saída. A partir daí, o excesso de ordem e o excesso de simetria passam a ser sufocantes. A ordem se mostra inimiga da vida.

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O horror oculto nesses espaços cotidianos já foi tema de vários jogos independentes (e há um quê dessa ideia em títulos como Silent Hill ou P.T.). Removendo cada vez mais elementos e simplificando a fórmula, chegamos nas Backrooms, o horror do liminar em seu ponto mais minimalista.

Portanto, o terror que transpira nos seis capítulos de POOLS não é o medo cristão, não é o medo da morte, não é o medo da dor, mas a opressão pungente do incompreensível, de ser o único ser vivo perpetuamente perdido em um labirinto sem sentido. A Tensori nos transforma metaforicamente de novo em crianças. Saímos da piscina e não vemos nossos pais em lugar algum do clube. Não vemos ninguém. A lógica nos escapa. Há portas, passagens, escadas e água para todo lado, mas não há respostas ou alento.

A ausência de qualquer contexto funciona como uma faca que corta dos dois lados. Sem história, poderíamos encaixar nossas personalidades no protagonista. Porém, ele acaba se desumanizando nesse ambiente, se tornando pouco mais do que um tripé para a câmera. Ele não fala, ele não se comunica, ele não externaliza sua humanidade. Da mesma forma, a Tensori não libera uma única fagulha de pista. Não há sinais de outros que passaram por aqui antes de nós, não há qualquer vestígio de explicação e tudo vai se mesclando em um pesadelo dadaísta. Até mesmo o brasileiro Backroom Beyond ainda deixava transparecer um pouco de sentido aqui e ali e era possível forjar uma conclusão. POOLS é interrogação em estado bruto.

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Passeando Pelas POOLS

Para aquilo que o jogo se propõe, ele é perfeito. Graficamente, ele tira sangue da GPU para entregar cenários fotorrealistas impecáveis, que só aumentam a sensação de que algo não está certo. A arquitetura de suas fases impressiona pela complexidade, mas também pelo sentimento de desolação que ela passa.

Além disso, de alguma forma que eu não consigo expressar em palavras, a Tensori conseguiu criar mapas intrincados em que o jogador é conduzido quase inconscientemente. Não sei que gatilhos visuais eles usaram para mostrar o caminho certo ou que magia tecnológica foi empregada para que o caminho escolhido sempre acabe conduzindo para onde é necessário ir. No mais confuso dos labirintos, às vezes com geometria digna de M.C. Escher, jamais passei duas vezes pelo mesmo lugar.

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A sensação de imersão nesse espaço se complementa com os efeitos sonoros, sutis, mas sempre presentes. O eco é perfeito em câmaras vastas, o som de passos molhados quando saímos da água, os barulhos indecifráveis que podem ser ouvidos à distância, tudo está lá para envolver.

Talvez o maior desafio de POOLS seja encontrar seu público. Não há sustos nessa jornada, não há monstros, não há combate, não há surpresas, não há interatividade alguma, além de caminhar. Não há nem mesmo interface. Essa dimensão atrás das dimensões é o inimigo, é a surpresa.

Em minhas mãos, se eu fosse um desenvolvedor, eu me sentiria tentado a colocar alguns puzzles, uma lanterna, um sistema de fome (obviamente, não de sede), mensagens cifradas… A Tensori optou por remover tudo que não pertença ao sensorial. Nossa função é única e exclusivamente navegar por ambientes em que o homem não deveria estar, uma abominação cósmica que zomba de nossas construções.

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E então, tudo acaba. Há um vislumbre de uma outra camada no epílogo, a única concessão que a desenvolvedora faz para algo que possa ser chamado de narrativa. Foi uma experiência curta, de exatos 99 minutos, que dividi em duas sessões. POOLS não é um título para todos os jogadores, nem mesmo os de terror, nem mesmo os fãs de Backrooms, essa nunca foi sua proposta. Para aqueles poucos insanos que serão atraídos, essa será uma jornada de tirar o fôlego, com o perdão do trocadilho.

Ouvindo: Metallica - Frantic (Live)

4 de maio de 2024

Despejo de Memória: Tudo Junto e Misturado 4

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Mais de um ano se passou desde a última postagem do gênero? Alguma coisa ainda é constante nesse blog? Quem é o responsável? Chame o gerente, por favor!

Seguindo a proposta, separei mais sete conteúdos interessantes que podem ter passado despercebidos por você nos últimos meses. Não há uma temática unificada juntando tudo... é apenas um...[pausa dramática] despejo de memória!

  • https://www.nexusmods.com/maxpayne3/mods/84?tab=description
    Max Payne 3 não foi desenvolvido pela Remedy Games e não utilizou o rosto do desenvolvedor Sam Lake como modelo para o protagonista. Esse mod faz o impensável: devolve o rosto de Sam Lake para Max Payne 3.
  • https://imgur.com/a/lLLk0Xu
    Queria ter dinheiro para fazer isso... esse jogador viajou pelo mundo documentando locações reais que apareceram em jogos da franquia Assassin's Creed e fez um um comparativo a partir dos mesmos ângulos.
  • https://keeperfx.net/downloads
    Dungeon Keeper é um clássico de estratégia que eu sempre quis gostar, mas nunca me adaptei. Esse remake de código aberto foi feito por fás e está disponível gratuitamente.
  • http://www.smbthecomic.com/comic/page-1/
    Parece chocante, mas existem fãs do filme live-action do Mario. Sabendo que o longa-metragem jamais receberia a continuação insinuada na cena final, eles foram lá e fizeram uma sequência em quadrinhos, com a ajuda de um dos roteiristas originais.
Ouvindo: Ultima IX Redemption (Fan Mod) - Wanderer4

1 de maio de 2024

Jogando: Phantom Fury

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(publicado originalmente no Gamerview)

Nostalgia vende e o fenômeno dos "boomers shooters" veio para acariciar a memória dos tiozões que distribuíram chumbo grosso na segunda metade dos anos 90 e apresentar um estilo que o tempo esqueceu para a molecada de dedo nervoso. Afirmar que Phantom Fury se encaixa no movimento seria injusto. A personagem Shelly "Bombshell" Harrison surgiu um jogo isométrico chamado Bombshell, que deveria ter sido um título estrelado por Duke Nukem, mas problemas de licenciamento atrapalharam os planos. Shelly cresceu para se tornar a resposta empoderada do personagem mais famoso, ganhando seu próprio FPS 3D, chamado Ion Fury.

Chegamos então na continuação. Phantom Fury não pega carona nos "boomer shooters": Shelly tem DNA daquela era distante, é a filha perdida da 3D Realms, a sucessora legítima de uma geração. O novo jogo entrega tudo que se espera do gênero de quase três décadas atrás, com algumas poucas mudanças na fórmula e alguns poucos equívocos.

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3D is My Passion

Em termos de história, Phantom Fury entrega o básico: nossa protagonista acorda em uma mesa de operações após os eventos do jogo anterior. O lugar ao redor está caindo aos pedaços e ela precisa fugir. Daí pra frente, é uma questão de ir acumulando armas e ir capotando os inimigos que aparecem pelo caminho, enquanto um fiapo de trama é passado por comunicadores. Não importa realmente. É tudo uma desculpa bem tênue para o recheio do jogo: explorar mapas e meter bala.

Os mapas são ao mesmo tempo imensos e pouco complexos. A tecnologia evoluiu desde os tempos áureos da 3D Realms e limitações foram removidas. Agora, é perfeitamente possível estender as fases por centenas e centenas de metros, com paisagens colossais, sem explodir a memória das máquinas.

Em contrapartida, de alguma forma, isso tornou a criatividade dos designers mais acomodada. Partes significativas dos mapas não apresentam nenhum conteúdo que valha a pena ser descoberto, são apenas partes funcionais do mundo real. Raramente, é possível encontrar um recurso adicional aqui e outro ali, mas, em grande parte, se você se desviar do caminho principal, vai ser por sua conta e risco, sem recompensas.

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Dopefish vive!

Além disso, nos tempos de outrora (sim, eu vivi aquilo), era comum que muitas partes dos mapas se conectassem entre si, criando um labirinto interessante. Phantom Fury é muito mais linear nesse aspecto e não precisava: Supplice, outro "boomer shooter", tem mapas igualmente enormes, com tantas partes conectadas, que dá até para se perder. Para complicar, o layout das fases de Phantom Fury, ainda que perca em densidade para tantos outros títulos, nem sempre é claro sobre o caminho certo.

Bala na Cabeça

Se explorar mapas não é exatamente prazeroso por aqui, pelo menos o tiroteio é caprichado. Já passamos da fase de nos deslumbrar com ambientes 3D em jogos de tiro, certo? O que conta para os dias de hoje é o impacto das armas e a variedade dos inimigos.

Novamente, Phantom Fury acerta um pouco e erra um pouco. O arsenal Shelly "Bombshell" Harrison é vasto, com armas alternativas em quase todos os slots. Dessa forma, temos dois tipos de pistola, dois tipos de metranca, dois tipos de escopeta e por aí vai. Além do lugar comum, existem também algumas armas mais exóticas. Não é nada que lembre o inesperado de um Blood ou de um Shadow Warrior (o original), mas é uma seleção que faria o velho Duke Nukem dar um sorrisinho de canto de boca.

As armas do jogo também podem ganhar vantagens adicionais em quiosques de evolução, assim como a própria protagonista conta com habilidades extras fornecidas por seus implantes biônicos. Não é nada que revolucione a jogabilidade, mas adiciona um tempero para os confrontos.

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Infelizmente, os inimigos não correspondem ao que se espera de um FPS descerebrado dos anos 90. Todos podem ser facilmente divididos em duas categorias: forças paramilitares cibernéticas e mutantes. Os primeiros tem várias classes, mas são todas difíceis de distinguir na hora do sufoco. A falta de uma sinalização visual mais clara dificulta quando é necessário escolher a melhor arma para cada inimigo. Além disso, todos os inimigos tem a habilidade de enxergar a heroína a cem metros de distância, quando eles mesmos são pouco mais do que uma mancha de pixels na tela. Para piorar, os inimigos acertam com frequência irritante, mesmo de muito longe, enquanto é complicado para Shelley cravar um tiro certeiro em uma mancha que se move.

Apesar dessa baixa variedade de inimigos e das vantagens injustas que eles desfrutam, o combate é gostoso. O desafio está no ponto certo. Cada batalha pode ser vencida com a combinação exata de destreza e equipamento correto. Mesmo que se saia de algumas lutas com vida baixa, há a certeza de que curas e armaduras foram bem distribuídas pelo mapa.

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A Fúria Fantasma de Phantom Fury

O apelo da nostalgia é muito forte. Em muitos aspectos, Phantom Fury nos lembra daquela demo perdida de Duke Nukem Forever, perdida no distante ano de 2001. As aventuras de Shelley nos levam para bases de mísseis controladas por forças hostis, para uma metrópole, para o interior do Grand Canyon, para a estrada, ambientes que tinham sido apresentados para nós no trailer da quarta aventura de Duke Nukem. Ali, o falastrão original dirigia veículos e detonava geral. Aqui, nossa heroína dirige veículos e detona geral. Se o Duke Nukem Forever real lançado muitos anos depois foi uma grande decepção, Phantom Fury é um resgate temporal do que poderia ter sido.

Ficou faltando a trilha sonora arrebatadora dos clássicos do passado (ou de um Doom moderno). Shelley está nos devendo essa. Há também alguns problemas técnicos miúdos, como física bizarra em alguns momentos, cadáveres flutuando no céu e uma eventual queda pra fora do mapa. Nada que não possa ser corrigido com patches, que fique bem claro.

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Shelly "Bombshell" Harrison talvez nunca saia da sombra dos grandes títulos da 3D Realms ou nunca conquiste a popularidade de Lo Wang, Duke Nukem, Caleb e tantos outros, mas ela marca aqui seu nome na base da bala, no grande mural dos FPS que não se fazem mais.

Ouvindo: Pink Floyd - Autumn '68

26 de abril de 2024

(não) Jogando: Death Stranding

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Seria impossível começar essa análise sem mencionar e agradecer a presença de Sr. Death. Em mais de um momento, sem esperanças, lutando para chegar em algum ponto do gigantesco mapa, uma luz se acendeu em minha frente e era um gerador deixado para trás por Sr. Death ou um veículo abandonado por ele e que agora me seria extremamente útil. Nem a ferrugem, nem as intempéries temporais me impediriam de aproveitar aquela dádiva largada, uma garrafa flutuando no oceano de Death Stranding.

A obra de Hideo Kojima tem diversos pontos característicos, mas acredito que nenhum deles ultrapassa o imenso esforço colaborativo de seu universo. Não somos jogadores, somos compartilhadores de um universo que é simultaneamente solitário e comunitário. Suas regras nunca ficaram completamente claras para mim ou, do ponto de vista técnico, como é possível que as peças se encaixem umas nas outras. Atravessamos uma trilha longa que já foi trilhada por outros e esses outros ergueram estruturas e avisos que ajudam a suavizar o fardo que todos carregam. Por sua vez, cabe a cada um de nós também deixar um legado para aquele que virá depois.

O jogo traz uma sensação de pertencimento muito maior do que qualquer outro MMORPG que já experimentei, ainda que, em momento algum, eu esteja diante de outro jogador. Estradas são erguidas graças aos esforços de todos. Essa fronteira desolada de uma América arrasada se torna mais amigável enquanto pontes são literalmente construídas. Nosso critério de evolução não está na quantidade de inimigos derrubados ou desafios superados, mas principalmente no quanto nossas ações tem efeitos positivos na vida de outras pessoas, reais ou imaginárias.

Nesse sentido, temos talvez o primeiro meta-jogo AAA. Aquilo que é mencionado ao longo de toda a trama também é executado pela própria jogabilidade (inédita para mim): estamos nos conectando.

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Hideo Kojima é Foda

A respeito do subtítulo acima, preciso esclarecer que meu contato prévio com o desenvolvedor Hideo Kojima se resumia a uma dezena de horas com Metal Gear Solid para PC, talvez duas décadas atrás. Abandonei o jogo por razões de enfrentar dificuldades, mas guardei o save durante muitos anos, até me dar conta de que o título provavelmente não seria mais compatível com a versão atual do sistema operacional e que eu certamente já teria esquecido todos os comandos. Enfim, Metal Gear Solid não me impressionou, era apenas mais um jogo dentro de dezenas de outras opções.

Há um oceano de distância entre os dois títulos. Death Stranding representa o resultado de um Kojima muito mais maduro, assim como um Kojima livre de amarras, comandando sua própria desenvolvedora. Há excessos em Death Stranding. O abuso de cutscenes para construir uma atmosfera cinematográfica pode incomodar muita gente. A presença constante de personagens que fogem dos padrões da normalidade (ou mesmo da compreensão) é outra marca registrada de Kojima, ame ou odeie. Tampouco ouso afirmar que entendi plenamente o que é o Death Stranding ou qualquer um dos eventos que acontecem na tela.

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Entretanto, é inegável que Hideo Kojima traz um trabalho fortemente autoral em uma indústria tragicamente dominada por produtos desenvolvidos por comitês, seguindo marcações em um Powerpoint para maximizar potencial de vendas. Uma indústria em que fórmulas são repetidas até a exaustão e poucos criadores conseguem, de fato, deixar sua assinatura. Se o estilo dos jogos de Kojima agrada ou não, é uma questão mais pessoal. Aqui, minhas emoções se alternaram entre bocas abertas, lágrimas nos olhos e sorrisos no canto da boca.

A experiência intelectual de mergulhar em um cenário de ficção científica que beira o inexplicável se complementa com uma overdose sensorial, representada por gráficos deslumbrantes, paisagens de tirar o fôlego e uma trilha sonora alternativa que aparece pouco, mas acalenta quando surge. Death Stranding é jogo para parar no alto da colina quando a música começa e simplesmente apreciar o prazer de se estar vivo, seja dentro daquele universo, seja no mundo real. E torcer para a chuva não estragar tudo.

Simulador de iFood

O único erro de Death Stranding (excetuando o derradeiro, mas chegaremos lá...) esteve no seu marketing. A partir do momento em que a divulgação saiu das mãos de seu criador, a produtora 505 Games pode ter vendido a ideia errada de que tínhamos aqui um jogo de ação pós-apocalíptico. Mesmo que existam momentos desse tipo, a atmosfera e o ritmo de Death Stranding não poderiam ser mais diferentes.

A aventura de Sam Bridges de costa a costa de um Estados Unidos destruído está mais próxima da experiência de um simulador de caminhões do que da jornada de um Joel ou de uma Aloy. O loop de jogabilidade exige que o jogador pegue uma carga no ponto A e conduza-a em segurança até o ponto B, atravessando terreno irregular e, frequentemente, perigoso. É necessário planejamento de rota, mas também uma boa dose de improviso, uma vez que o mapa não é o território e eventos imprevisíveis podem acontecer no caminho. O controle do espaço físico e sua travessia são tarefas que exigem paciência, não velocidade, cautela, não ímpeto. Death Stranding se torna assim jogo para relaxar, para sopesar cada passo, para contemplar a estrada. Andar (ou dirigir, se for o caso) se torna mais importante do que a chegada em si.

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Em paralelo, Hideo Kojima constrói então outro título inspirado na gig economy, como New World, que veio depois. Nossa sociedade se encontra fragmentada, separada por distâncias intransponíveis. Apenas os entregadores são capazes de estabelecer o vínculo tão necessário para que existamos como uma espécie única. Nesse ponto, é indiscutível a genialidade de seu criador, que enxergou o zeitgeist das bolhas de isolamento, muito antes da pandemia tornar concreto o que antes era somente metafórico. Nos trancamos em nossas próprias esferas, em nossos próprios conceitos, em nossos jardins murados e não saímos de nossas tocas nem mesmo para buscar suprimentos, dependendo de lojas online e motoqueiros, enquanto saciamos nossa vaidade com curtidas.

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Obviamente, Death Stranding é uma hipérbole, se os fetos psíquicos ou as entidades sobrenaturais invisíveis não explicitaram isso o suficiente. Entretanto, a mensagem permanece: o contato é fundamental para continuarmos sendo seres humanos.

Death Stranding então é um jogo de caminhar, um walking simulator, se preferir, porém um com múltiplas camadas mecânicas em que até mesmo a forma como você pisa pode determinar o sucesso ou não de sua jornada. Não é um jogo de tiroteios, ainda que existam armas na seleção de equipamentos de seu protagonista. Até nessa leitura, Kojima deixa sua crítica: a morte tem impacto, mais impacto do que na maioria dos jogos. A morte está vindo para todos e cada um que tomba representa um perigo para a coletividade. Precisamos nos manter vivos e sãos, precisamos não matar se quisermos sobreviver.

O Que Deu Errado em Death Stranding?

Até recentemente, eu tinha a plena convicção de que Death Stranding seria, na pior das hipóteses, o melhor jogo que eu terminaria em 2024, aparecendo na lista publicada em janeiro de 2025. Na melhor das hipóteses, ele entraria na lista de favoritos da vida. Cada sessão era um portal que se abria para uma segunda vida, em que uma, duas, até três horas podiam se passar sem perceber o meu entorno, uma bolha dentro da bolha dentro da bolha. Lamentava que fosse obrigado a espaçar minhas sessões para me dedicar a outros títulos, fosse algo para o Gamerview, fosse o viciante Warframe ou outra experiência que chamasse minha atenção em dado momento. Death Stranding merecia 100% de atenção, sem pressa.

Então, fui estendendo minhas mais de 60 horas de jogo ao longo de mais de seis meses. Até que um dia...

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Revirei a internet em busca de respostas. Como um jogo que funcionou por 65 horas se recusava a abrir repentinamente? Como tudo no jogo, a falha também foi compartilhada por muitos jogadores ao longo dos últimos quatro anos, em diferentes versões, em diferentes sistemas operacionais, em diferentes configurações. Não há uma resposta que funcione para todos. Não há uma resposta que funcione para mim. Tentei todas as alternativas possíveis, exceto reinstalar o Windows inteiro.

Eu estava na reta final da narrativa. Havia concluído todo o trajeto de uma ponta até a outra do país. Estava travado no que desconfio que fosse a última batalha de chefe. E o portal se fechou por completo.

Não estava preparado para escrever sobre Death Stranding agora e tampouco sinto que minhas palavras possam sequer começar a descrever tantos momentos sublimes em paisagens inesquecíveis. Obrigado, Sr. Death, obrigado, Kojima, obrigado a todos os portadores que chegaram lá quando tudo ainda era mato. Espero que aqueles que vierem depois aproveitem as rodovias que ajudei a levantar, minhas escadas e tirolesas, enquanto elas existirem.

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Com save games preservados na nuvem, tenho a impressão de que isso não é um "adeus", mas um "até breve". A travessia foi fantástica, sem a menor sombra de dúvidas, mas eu preciso saber o que está lá no fim da estrada.

Ouvindo: Gorillaz - Highway (Under Construction)

22 de abril de 2024

(não) Jogando: Harold Halibut

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(publicado originalmente no Gamerview)

É possível amar e odiar um jogo ao mesmo tempo? Harold Halibut é fruto do esforço de um punhado de artistas que levaram doze anos para literalmente concretizar um sonho. Existe dedicação, existe arte em cada pixel presente nessa tela, um prodígio técnico jamais igualado.

Em contrapartida, a desenvolvedora Slow Bros faz jus ao próprio nome e entrega uma experiência enfadonha, um belo tormento que o jogador apenas deseja que termine ou que, pelo menos, chegue em algum lugar. É uma animação digna de Oscar, que tenta ser um jogo e fracassa espetacularmente.

Harold Halibut é Lindão Demais

Não tem como começar essa análise sem o impacto da impressão inicial. Se você está lendo isso, é provável que já tenha ouvido falar do projeto. O desenvolvimento do jogo começou em 2012, em uma conversa de jantar. Um grupo de amigos revelou sua paixão por jogos eletrônicos narrativos e por animação em stop-motion. Daí para começar a criar cenários e modelos foi um pulo.

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São inegáveis a paixão e o talento de seus criadores. Está visível já nos trailers. A Slow Bros criou um mundo majestoso de miniaturas e maquetes. Tudo que está na tela foi esculpido, modelado e animado no braço. Ainda assim, a fluidez dos movimentos é excepcional. O uso da iluminação é excepcional. A qualidade tátil dessas pessoas e objetos é excepcional. Harold Halibut não é o primeiro jogo em stop-motion (um salve para The Neverhood, do distante ano de 1996). Existem pouquíssimos no gênero e absolutamente nenhum deles supera a perfeição técnica atingida aqui.

Harold é o nome do protagonista, um homem comum, de intelecto possivelmente abaixo da média, mas de bom coração. Prestativo, ele está sempre disposto a ajudar seus vizinhos e amigos, a população da nave espacial naufragada Fedora. Essa sociedade é praticamente uma aldeia, com tipos surreais, mas palpáveis, pequenos fragmentos de vida que todos nós possivelmente já esbarramos por aí, com uma pitada de esquisitice, no máximo. É muito fácil se apaixonar por esses personagens e querer conhecer um pouco mais sobre suas vidas, seus amores, seus sonhos e objetivos.

Esse é o nível da qualidade da animação e da modelagem: seu protagonista, seus NPCs não precisam respirar para parecerem vivos na tela, mais vivos do que muitos personagens 3D gerados por computadores. Em um ano em que conteúdo sem alma gerado por IA caminha para se tornar a norma, a Slow Bros nos oferece um trabalho artesanal, quase folclórico, lotado de aconchego.

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Nada Acontece, Feijoada

Lamentavelmente, o encantamento com Harold Halibut termina quando as horas se arrastam. Mecanicamente, isso não é um jogo. É um simulador de ir e voltar, de caminhar longas distâncias para ouvir longos diálogos. Pode-se argumentar (com certa maldade…) que essa descrição também se encaixa em obras maiores, como Death Stranding, por exemplo. Porém, é importante salientar que Death Stranding tem múltiplas camadas de jogabilidade, inclusive para o próprio ato de caminhar. Harold apenas anda de um ponto ao outro e ativa conversas em cutscenes.

Ocasionalmente, Harold esbarra em alguma outra mecânica diferenciada. São momentos raríssimos. Mesmo assim, a Slow Bros perde a oportunidade de apresentar algo que seja minimamente desafiador. São puzzles tão simples que uma criança de cinco anos conseguiria resolver: girar um parafuso, apertar um botão quando toca um alarme, esfregar uma esponja para limpar uma sujeira.

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Por algum tempo, acreditei que essas tarefas enfadonhas guardavam algum significado mais profundo. Seria uma forma mecânica da desenvolvedora nos colocar na vida monótona do protagonista, um faz-tudo, um quebra-galhos para quem nunca é oferecida uma oportunidade mais complexa? Depois de horas e horas, ficou claro que não há uma proposta por trás de tudo. Harold aceita o que lhe é empurrado sem jamais questionar, sem demonstrar que esteja sentindo o mesmo tédio que eu. Sem exagero algum, Harold Halibut foi um dos poucos jogos que me deu sono, vontade real de ir dormir.

Seria então um "walking simulator"? O princípio do bom "walking simulator" é ter uma sensação ou história para transmitir. Harold Halibut é muito eficiente em passar a sensação de que estamos vivendo uma realidade prosaica. Existe todo um pano de fundo para o fato dessa nave espacial estar submersa em um oceano alienígena, existe contato com outras formas de vida inteligentes, existe até mesmo uma conspiração por trás da empresa que controla o funcionamento da nave. E, ainda assim, o cotidiano de Harold não poderia ser mais banal, beirando o bobo. As grandes questões não tem o menor impacto no que ele ou nós sentimos, o fantástico também se torna banal.

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Existe uma contagem regressiva no jogo e uma grande história por trás, mas ela acontece à revelia da jogabilidade. Os grandes momentos são tão espaçados e mudam tão pouco o status quo que não incentivam o retorno. O ritmo imposto pela Slow Bros é lento, lento demais, quase insuportável de tão lento.

Harold Halibut pode agradar um único tipo de público: aqueles que enxergam o belo no comum. Talvez o grande trunfo desse "jogo" não esteja somente na qualidade técnica, mas nas pequenas histórias tão normais que emergem a conta gotas nessa paisagem tão provinciana.

Ouvindo: Sigue Sigue Sputnik - The Futures On Fire With Rock`N`Roll

20 de abril de 2024

Outcast - A New Ending

Ulukai e Lehaz

A reta final de Outcast - A New Beginning é tão divisiva que merece um capítulo separado em relação a minha análise original. Obviamente, haverá spoilers.

Foram 44 horas nessa jornada, uma quantidade que deve ser considerada absurda em relação às 22 horas que levei para completar Outcast - Second Contact. O motivo para eu ter levado o dobro do tempo não foi sua história, que possivelmente tem a mesma duração do jogo anterior. O motivo foi minha quase obsessão por suas deliciosas mecânicas. Eu, que sempre fui um crítico do excesso de marcações no mapa de franquias como Far Cry ou Assassin's Creed, me vi aqui caçando atividades loucamente, repetitivamente, apenas para esticar um pouco mais o prazer de saltar, voar e até mesmo dar combate a meus inimigos.

Entretanto, tudo tem seu limite. Finalmente saciado, desejava ver a conclusão da história, que, até então, vinha sendo oferecida a conta-gotas. Para meu desespero, percebi que são necessários determinados gatilhos para se avançar em cada vila, gatilhos esses que dependem de tempo entre um e outro (o que me obrigava a retornar para as atividades secundárias) ou que dependem de conversações muito específicas com personagens chaves. A desenvolvedora Appeal segura a mão do jogador e lhe mostra o que fazer em 90% do tempo, de forma quase didática. Nos outros 10%, somos obrigados a adivinhar o que é necessário fazer para progredir, como nos bons e velhos tempos do Outcast original.

E então veio a reviravolta...

Sankra!

Reunificadas todas as aldeias de Adelpha, neutralizados todos os postos avançados dos invasores humanos, desbloqueados todos os poderes que serão utilizados na guerra iminente, o jogo dá uma forte guinada de tonalidade. Ao longo de quarenta horas, brinquei de salvador branco, resolvendo a maioria dos problemas na base de tiro, porrada, bomba (e enxames de vespas gigantes) e estava tudo bem. Exceto que, sem que o jogo desse pistas explícitas nesse sentido, eu estava conduzindo aquela cultura para um caminho sem volta de violência e fanatismo religioso.

O retorno de Ulukai semeia Sankra, o caos entre os elementos. Sem que me fosse dada essa percepção, eu estava fomentando o surgimento de uma milícia fortemente armada que estava prestes a assumir o comando de Adelpha para expulsar o invasor com sacrifícios. Essa mesma milícia transformou amigos em inimigos, passou a determinar costumes, perseguir opositores e estabelecer um culto religioso. Eu havia recriado, em um universo completamente ficcional, o movimento Taliban.

O que antes havia sido uma aventura branda, lotada de sarcasmo e violência contra robôs e animais irracionais, tomou uma dimensão preocupante que prometia derramamento de sangue e uma guerra sem perspectiva de vitória. Um povo antes inocente e pacífico parecia condenado a seguir caminhos obscuros. Cutter Slade tinha deixado Adelpha em um estado pior e aparentemente irreversível. Eu havia trazido Sankra para o planeta. Movido pela melhor das intenções, eu havia cometido o mesmo pecado de Fae Rhan eras atrás.

A mudança surge de forma brusca. O que Frank Herbert levou centenas e centenas de páginas para explicar nos livros de Duna (e muitos não entenderam até hoje), aqui nos é apresentado em questão de minutos. O ovo da serpente chocou.

Curiosamente, confrontado com esse dilema, o que me foi oferecido para solucioná-lo? Novos confrontos. Mais tiroteio para eventualmente tentar negociar um acordo de paz. O que começou divertido, havia se tornado repetitivo e agora era amargo. Mais faíscas para o barril de pólvora, sangue para o deus do sangue, ossos para o trono de ossos.

Evidentemente, a solução nos escapa. O jogo chega a colocar Cutter Slade, o mercenário, o senhor da guerra, no papel de um embaixador da boa vontade, com direito a discurso edificante. Tarde demais. Evidentemente, mais vidas são ceifadas. Pessoas que se tornaram importantes para Slade são consumidas diante de seus olhos. Como sair desse dilema que a própria guinada de tom provocou?

Deus Ex Machina

A Wikipédia nos explica que o recurso do deus ex machina é "uma solução inesperada/mirabolante para terminar uma obra ficcional". É um clichê tão velho quanto a própria narrativa, utilizada no teatro grego, quando o narrador não sabia o que fazer para concluir uma trama e uma divindade aparecia para interferir. O final de Outcast - A New Beginning é o puro suco do "deus ex machina".

Os Yods, as divindades básicas de Adelpha, interferem diretamente no conflito que poderia destruir duas civilizações. Esse é o tamanho do fracasso de Cutter Slade. É questionável por que os Yods escolheram um militar para resolver um problema que exige equilíbrio. Ainda que tenha bom coração e um forte senso de dever, Slade é limitado em sua percepção. O desastre por ele provocado sintetiza sua inabilidade de solucionar o que quer que seja sem transformar tudo em uma guerra. Então por que ele foi escolhido desde o primeiro jogo? E por que os Yods não conferiram a ele desde o começo o poder que ele empunha no final?

Outcast - A New Beginning chega a repetir o mesmo erro da batalha derradeira do primeiro jogo. Passamos dezenas de horas evoluindo habilidades e armas que nos são tiradas no último confronto. Estratégias que adotei durante toda minha jornada foram jogadas fora. Impossibilitado de vencer o último chefe, apelei para reduzir a dificuldade para Fácil.

No epílogo, tudo se resolve de forma extremamente rápida e milagrosa. Os Yods se manifestaram através de suas novas profetisas, está tudo bem agora. Slade foi uma bucha de canhão que mais atrapalhou do que ajudou no grande esquema das coisas. Terra e Adelpha atingiram um estado de união que sequer faz sentido. Se vamos falar seriamente de geopolítica, a solução da conclusão chega a ser utópica, para não dizer infantil.

Sobem os créditos, com cenas magníficas de como Adelpha se encontra agora. Outcast - A New Beginning tem muitas falhas em sua reta final. Entretanto, não me arrependo da jornada, não me arrependo das 44 horas, assim como Slade, eu dei o máximo de mim, movido pelo amor por esse planeta, seu povo e suas tradições. Que seja feita a vontade dos Yods.

Ouvindo: Draconian - The Solitude

Retina Desgastada

Blog criado e mantido por C. Aquino

Outcast - A New Beginning